domingo, 23 de dezembro de 2012

Strange Fruit - a canção do século XX

Baseada possivelmente em um macabro cartão postal - que à época era uma novidade para pessoas refinadas - fotografado por Lawrence Beitler do linchamento e enforcamento dos negros Thomas Shipp e Abram Smith, em Marion, Indiana. A canção Strange Fruit foi composta em 1936 por Abel Meeropol, professor universitário de origem judia, comunista, poeta e conhecido pelo pseudônimo de Lewis Allan. Publicou-a primeiramente como um poema em um periódico marxista novaiorquino, The New Masses, e depois musicou-a. Futuramente, em 1957, Meeropol e sua esposa adotariam os filhos do casal Julius e Ethel Rosenberg, pivôs do famoso e controverso caso de espionagem a favor da URSS em que foram condenados e executados na cadeira elétrica.
Ainda desconhecida, Barney Josephson, fundador do Cafe Society, um bar frequentado por esquerdistas e negros em Nova Iorque - aliás, o único lugar onde brancos e negros conviviam pacificamente - ouviu-a e apresentou a Billie Holiday. A cantora teve medo de apresentá-la temendo represálias, mas o fez pois a canção a lembrava do pai. Foi um sucesso e se tornou a marca da cantora, hino da luta pelos direitos humanos e igualdades sócio-racial. Era um sucesso diferente, estranho, as emissoras de rádio não divulgavam, Meeropol nem se dera ao trabalho de registrar sua autoria. Demorou anos para que uma gravadora ousasse gravá-la. A Columbia recusou, a CBS também, entre outras. Até que uma gravadora alternativa, a Commodore Records o fez, depois que Billie procurou e cantou a música para o dono da gravadora e amigo Milt Gabler. Este chorou ouvindo a execução a cappella da canção. Venderam tudo em um piscar de olhos. Mas até os dias de hoje ainda é uma canção "tabu", desconhecida das massas.
Eleanora Fagan Gough, ou Billie Holiday nasceu na Filadélfia a 7 de abril de 1915. Negra e pobre, filha de adolescentes negros e pobres - à época, seu pai, Clarence Holiday tinha 15 anos, e sua mãe Sarah Fagan 13 - passou por sofrimentos duríssimos. Seu pai deixa a família para tocar guitarra em uma banda de jazz. Sua mãe a deixava constantemente com familiares. Aos dez anos foi estuprada por um vizinho e internada em uma casa de correção para meninas vítimas de abuso. Aos doze era faxineira de um prostíbulo, e aos quatorze, morando com a mãe em Nova Iorque se torna prostituta. Em 1930 ela e a mãe estavam ameaçadas de despejo onde moravam por falta de pagamento. Sai às ruas em desespero para arranjar algum dinheiro e entra em um bar no Harlem para se oferecer como dançarina. Não sabia dançar, mas o pianista sugeriu que cantasse. Cantou e conseguiu um emprego fixo, nascendo Billie Holiday.
Strange Fruit se torna a marca da cantora. No Cafe Society, antes da canção começar, todos os garçons paravam de servir e todas as luzes se apagavam. Cessam os movimentos, param as conversas. Entrava uma negra de 23 anos no palco e uma única luz se acendia sobre ela. Ela cantava com os olhos fechados, quase como uma oração:
As árvores do Sul estão carregadas com um estranho fruto,
Sangue nas folhas e sangue na raiz,
Um corpo negro balançando na brisa sulista
Um estranho fruto pendurado nos álamos.
Uma cena pastoril no galante Sul,
Os olhos esbugalhados e a boca retorcida
Perfume de magnólia doce e fresco,
Então o repentino cheiro de carne queimada!
Aqui está o fruto para os corvos arrancarem,
Para a chuva recolher, para o vento sugar,
Para o sol apodrecer, para as árvores fazerem cair,
Eis aqui uma estranha e amarga colheita.
A música pára causando um silêncio pesado e chocante. Um ou outro aplauso hesitante, e nervosamente todos aplaudem acaloradamente. Depois daquela canção a orquestra tocava um fox-trot ou algo mais animado para desfazer o pesado ambiente que Strange Fruit causava. Mas Billie Holiday não ficava no palco para receber os aplausos, nem cedia um bis, nem cantava mais nada depois dessa canção. Era um encerramento brusco, não havia espaço para rodeios, réplicas, comentários, nada. Nada além do fim da música era admitido ou possível. Assim é Strange Fruit.
Meeropol nasceu em 1903 e morreu em 1986 na casa de repouso judia de Longmeadow, em Massachusetts. Billie Holiday morreu em Nova Iorque à 17 de julho de 1959 por overdose - era alcoólatra e viciada em drogas.
Em outubro de 1939, Samuel Grafton do The New York Post assim descreveu Strange Fruit: "Se a ira dos explorados já foi além do suportável no Sul, agora há a sua Marseillaise". Em dezembro de 1999, a revista Time concedeu a Strange Fruit o título de canção do Século. Em 2002, a Biblioteca do Congresso colocou a canção dentre as 50 que seriam adicionadas ao National Recording Registry.
Leiam mais em Strange Fruit - Billie Holiday e a Biografia de uma Canção de David Margolick. Editora Cosac Naify de 2012.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Em nome de Deus?

Escrevi há algum tempo este pequeno texto pois acho realmente absurdo. Assusta ver o fanatismo religioso, independente de qual se origine. Porém nossa cultura ocidental é impregnada principalmente pela religião judaico-cristã, e a ela me reporto.
Antes de qualquer coisa, precisamos entender a história contada nestes livros do Antigo Testamento, Êxodo, Levíticos, Números, Deuteronômio e Josué. Moisés, após a fuga do Egito, sobe ao monte Sinai para encontrar com Deus, que lhe dará os mandamentos e os procedimentos para a liderança do povo Judeu. Porém Moisés demora e o povo fica impaciente e ansioso por sua volta: Êxodo, 32:1-7: “Mas vendo o povo que Moisés tardava em descer do monte, acercou-se de Arão, e disse-lhe: Levanta-te, faze-nos deuses, que vão adiante de nós; porque quanto a este Moisés, o homem que nos tirou da terra do Egito, não sabemos o que lhe sucedeu. E Arão lhes disse: Arrancai os pendentes de ouro, que estão nas orelhas de vossas mulheres, e de vossos filhos, e de vossas filhas, e trazei-mos. Então todo o povo arrancou os pendentes de ouro, que estavam nas suas orelhas, e os trouxeram a Arão. E ele os tomou das suas mãos, e trabalhou o ouro com um buril, e fez dele um bezerro de fundição. Então disseram: Este é teu deus, ó Israel, que te tirou da terra do Egito. E Arão, vendo isto, edificou um altar diante dele; e apregoou Arão, e disse: Amanhã será festa ao SENHOR. E no dia seguinte madrugaram, e ofereceram holocaustos, e trouxeram ofertas pacíficas; e o povo assentou-se a comer e a beber; depois levantou-se a folgar. Então disse o SENHOR a Moisés: Vai, desce; porque o teu povo, que fizeste subir do Egito, se tem corrompido.”
Grifei uma parte que achei extremamente interessante: trouxeram ofertas pacíficas, e o povo assentou-se a comer e beber, algo extremamente sadio, se feito em paz. Em seguida, Deus fica irado por terem construído um bezerro de ouro e ordena Moisés a descer, para que seu furor se ascendesse contra o povo. Moisés, a princípio, não compreende, e intercede pelo povo a Deus, mas não tem jeito. O estranho é que se o Deus judeu é todo poderoso, onipotente e onisciente, por que se enfurecer diante de uma simples estátua de um bezerro? Não seria mais humano e bondoso, diante de um um pecado sem intenção, pois o povo estava em paz, educar e ensinar ao povo que adorar uma estátua não era bom? Mas, enfim, continuemos: Êxodo, 32: 7-31: “E depressa se tem desviado do caminho que eu lhe tinha ordenado; eles fizeram para si um bezerro de fundição, e perante ele se inclinaram, e ofereceram-lhe sacrifícios, e disseram: Este é o teu deus, ó Israel, que te tirou da terra do Egito. Disse mais o SENHOR a Moisés: Tenho visto a este povo, e eis que é povo de dura cerviz. Agora, pois, deixa-me, para que o meu furor se acenda contra ele, e o consuma; e eu farei de ti uma grande nação. Moisés, porém, suplicou ao SENHOR seu Deus e disse: O SENHOR, por que se acende o teu furor contra o teu povo, que tiraste da terra do Egito com grande força e com forte mão? Por que hão de falar os egípcios, dizendo: Para mal os tirou, para matá-los nos montes, e para destruí-los da face da terra? Torna-te do furor da tua ira, e arrepende-te deste mal contra o teu povo. Lembra-te de Abraão, de Isaque, e de Israel, os teus servos, aos quais por ti mesmo tens jurado, e lhes disseste: Multiplicarei a vossa descendência como as estrelas dos céus, e darei à vossa descendência toda esta terra, de que tenho falado, para que a possuam por herança eternamente. Então o SENHOR arrependeu-se do mal que dissera que havia de fazer ao seu povo. E virou-se Moisés e desceu do monte com as duas tábuas do testemunho na mão, tábuas escritas de ambos os lados; de um e de outro lado estavam escritas. E aquelas tábuas eram obra de Deus; também a escritura era a mesma escritura de Deus, esculpida nas tábuas. E, ouvindo Josué a voz do povo que jubilava, disse a Moisés: Alarido de guerra há no arraial. Porém ele respondeu: Não é alarido dos vitoriosos, nem alarido dos vencidos, mas o alarido dos que cantam, eu ouço. E aconteceu que, chegando Moisés ao arraial, e vendo o bezerro e as danças, acendeu-se-lhe o furor, e arremessou as tábuas das suas mãos, e quebrou-as ao pé do monte; E tomou o bezerro que tinham feito, e queimou-o no fogo, moendo-o até que se tornou em pó; e o espargiu sobre as águas, e deu-o a beber aos filhos de Israel. E Moisés perguntou a Arão: Que te tem feito este povo, que sobre ele trouxeste tamanho pecado? Então respondeu Arão: Não se acenda a ira do meu senhor; tu sabes que este povo é inclinado ao mal; E eles me disseram: Faze-nos um deus que vá adiante de nós; porque não sabemos o que sucedeu a este Moisés, a este homem que nos tirou da terra do Egito. Então eu lhes disse: Quem tem ouro, arranque-o; e deram-mo, e lancei-o no fogo, e saiu este bezerro. E, vendo Moisés que o povo estava despido, porque Arão o havia deixado despir-se para vergonha entre os seus inimigos, Pôs-se em pé Moisés na porta do arraial e disse: Quem é do SENHOR, venha a mim. Então se ajuntaram a ele todos os filhos de Levi. E disse-lhes: Assim diz o SENHOR Deus de Israel: Cada um ponha a sua espada sobre a sua coxa; e passai e tornai pelo arraial de porta em porta, e mate cada um a seu irmão, e cada um a seu amigo, e cada um a seu vizinho. E os filhos de Levi fizeram conforme à palavra de Moisés; e caíram do povo aquele dia uns três mil homens. Porquanto Moisés tinha dito: Consagrai hoje as vossas mãos ao SENHOR; porquanto cada um será contra o seu filho e contra o seu irmão; e isto, para que ele vos conceda hoje uma bênção. E aconteceu que no dia seguinte Moisés disse ao povo: Vós cometestes grande pecado. Agora, porém, subirei ao SENHOR; porventura farei propiciação por vosso pecado. Assim tornou-se Moisés ao SENHOR, e disse: Ora, este povo cometeu grande pecado fazendo para si deuses de ouro.”
Gente, prestem a atenção: mataram uns três mil homens! Os homens estavam em paz, Moisés aparece a mando de Deus, Arão, quem constrói a estátua, fala que o povo, povo este escolhido pelo próprio Deus para deixar a escravidão no Egito, é inclinado ao mal, então irmão mata irmão, amigo mata o outro, e vizinhos se matam por causa de uma estátua de um bezerro. E Deus concederá uma bênção por isso! É realmente inacreditável. Ocorre, além disso, um contrassenso: Moisés, em cima do monte, já sabia o que estava ocorrendo e acalma Deus da Sua ira; por que se indigna tanto ao descer do monte, ele próprio se enfurecendo? Ou será que jogar as tábuas no chão, destruir o bezerro, e ordenar matar três mil é um sintoma de calma?
Um pouco mais adiante, Deus, cara a cara com Moisés, diz: Êxodo, 34:10 – 16: “Então disse: Eis que eu faço uma aliança; farei diante de todo o teu povo maravilhas que nunca foram feitas em toda a terra, nem em nação alguma; de maneira que todo este povo, em cujo meio tu estás, veja a obra do SENHOR; porque coisa terrível é o que faço contigo. Guarda o que eu te ordeno hoje; eis que eu lançarei fora diante de ti os amorreus, e os cananeus, e os heteus, e os perizeus, e os heveus e os jebuseus. Guarda-te de fazeres aliança com os moradores da terra aonde hás de entrar; para que não seja por laço no meio de ti. Mas os seus altares derrubareis, e as suas estátuas quebrareis, e os seus bosques cortareis. Porque não te inclinarás diante de outro deus; pois o nome do SENHOR é Zeloso; é um Deus zeloso. Para que não faças aliança com os moradores da terra, e quando eles se prostituirem após os seus deuses, ou sacrificarem aos seus deuses, tu, como convidado deles, comas também dos seus sacrifícios, E tomes mulheres das suas filhas para os teus filhos, e suas filhas, prostituindo-se com os seus deuses, façam que também teus filhos se prostituam com os seus deuses.” Isso realmente não pode ser verdade! Deus ordena que as filhas e filhos dos povos subjugados sejam “escravos” dos judeus! ELE diz que destruirá todos os povos que simplesmente adorarem outro Deus, que tamanha perversidade! E ainda diz mais: Êxodo, 34:24: “Porque eu lançarei fora as nações de diante de ti, e alargarei o teu território; ninguém cobiçará a tua terra, quando subires para aparecer três vezes no ano diante do SENHOR teu Deus.” Estas são as “maravilhas” que Deus fará!É um Deus perverso e imperialista, que não permite a união dos povos apesar das suas diferenças, seu intuito é destruir e ganhar territórios.
A partir do livro Êxodo, e entrando em Levíticos, Deus ordena a construção do Arraial, e dos procedimentos dos sacrifícios, tudo banhado a ouro, prata e cobre, com os mais viçosos tecidos e ornamentos, e uma infinidade de sacrifícios animais. É uma matança sem fim de animais para o holocausto. Depois trata sobre os animais que não se deve comer, e as imundícias das mulheres e dos homens, enfim os “estatutos e as leis e os juízos”. Uma questão extremamente intrigante é o número de regras e seus detalhes a serem seguidos. São tantos, mas tantos, que é quase impossível um homem comum se lembrar e seguir fielmente todos os procedimentos, e o não cumprimento tinha como resultado pecados e castigos dos mais terríveis. Parece que Deus fez de sacanagem. O que é estranho é o fato do povo judeu ser o “escolhido” dele, subentende-se que por serem escolhidos já agiam de forma correta e honesta aos olhos de Deus, que por isso o escolheu, mas não..., pelo que tudo indica na Bíblia eles só agiam de forma errada, e Deus lhe impôs milhares de regras para corrigir-lhes a conduta.
Então começa realmente a barbárie em Números. Até aqui, todo o absurdo foi um passeio no parque. Juntaram as doze tribos de Israel, e ordenaram que enviassem todos os homens acima de vinte anos para comporem um exército. Reuniram ao todo 603.550 homens, conforme a tabela:
tribo de Rubem 46.500
tribo de Simeão 59.300
tribo de Gade 45.650
tribo de Judá 74.600
tribo de Issacar 54.400
tribo de Zebulom 57.400
tribo de Efraim 40.500
tribo de Manassés 32.200
tribo de Benjamim 35.400
tribo de Dã 62.700
tribo de Asser 41.500
tribo de Naftali 53.400
Após regras inúmeras, mais ofertas a Deus, outras confabulações e disse-me-disses, foram ver os locais onde haviam povos a serem dominados. Eram locais prósperos, ricos e bem estruturados, porém não adoravam o Deus dos Israelitas, e isso bastava para a dizimação.
Outro detalhe importantíssimo a ser mencionado para termos de comparação é o efetivo do exército. Segundo dados do Almanaque Abril 2011, o Brasil tem um exército de 190.000 soldados; os EUA, 662.200; a França, 134.000; e Israel atualmente, 133.000. Podemos concluir que os judeus da antiguidade foram as pessoas mais brigonas que já pisaram na terra.
Números é um livro interessante, indico a todos lerem, pois vemos absurdos e crueldades que não combinam com o que entendo, e creio que a maioria também, entende por DEUS. Em uma das passagens nos deparamos com isto: Números, 15: 32-36: “Estando, pois, os filhos de Israel no deserto, acharam um homem apanhando lenha no dia de sábado. E os que o acharam apanhando lenha o trouxeram a Moisés e a Arão, e a toda a congregação. E o puseram em guarda; porquanto ainda não estava declarado o que se lhe devia fazer. Disse, pois, o SENHOR a Moisés: Certamente morrerá aquele homem; toda a congregação o apedrejará fora do arraial. Então toda a congregação o tirou para fora do arraial, e o apedrejaram, e morreu, como o SENHOR ordenara a Moisés.” Imaginemos a cena: o homem, um pai de família, agricultor ou caçador, sai de sua humilde casa em um dia de sábado para pegar lenha para sua esposa preparar os alimentos e aquecê-los da fria madrugada do deserto. No meio da sua tarefa aparece uma turba louca, o agarra e o leva para o arraial judeu. A princípio não sabem bem o que fazer com o homem, então alguém vai a uma tenda riquíssima, toda ornamentada, chamar Moisés. Voltam os dois até o pobre homem, cercado por fanáticos, e Moisés diz que Deus ordenou que levassem o homem pra fora e o apedrejassem até a morte! O homem simplesmente morre apedrejado por apanhar lenha ao sábado!!!!! Por ordem de Deus!!!!!????
O povo de Israel, em busca da terra prometida chega à cidade de Arade, e “os israelitas destruíram totalmente”. Essa destruição torna-se comum, e vem após uma artimanha: eles pedem pra passar pela cidade, jurando que nada vão fazer, o rei da cidade não deixa – obviamente desconfiado pelas notícias que vinham daqueles loucos – e os israelitas destroem tudo: Números, 21:21-25: “Então Israel mandou mensageiros a Siom, rei dos amorreus, dizendo: Deixa-me passar pela tua terra; não nos desviaremos pelos campos nem pelas vinhas; as águas dos poços não beberemos; iremos pela estrada real até que passemos os teus termos. Porém Siom não deixou passar a Israel pelos seus termos; antes Siom congregou todo o seu povo, e saiu ao encontro de Israel no deserto, e veio a Jaza, e pelejou contra Israel. Mas Israel o feriu ao fio da espada, e tomou a sua terra em possessão, desde Arnom até Jaboque, até aos filhos de Amom; porquanto o termo dos filhos de Amom era forte. Assim Israel tomou todas as cidades; e habitou em todas elas, em Hesbom e em todas as suas aldeias.” E então começa o empreendimento de conquista territorial. Primeiro, a região dos amorreus; depois, Jazer; depois, Basã, onde “nenhum deles escapou”. Um pouco mais adiante, vemos o intuito real do povo de israel em um diálogo entre Balaão e Balaque: Números, 24:8: “Deus o tirou do Egito; as suas forças são como as do boi selvagem; consumirá as nações, seus inimigos, e quebrará seus ossos, e com as suas setas os atravessará.”
Antes de prosseguirmos na assombrosa narrativa de dominação, acho importante um comentário. Todas as vezes que o povo de israel parava em alguma localidade, eles praguejavam, pecavam, se prostituiam, e Deus tinha que mandar pragas e matar um monte de gente para que sossegassem. Mas raciocinemos: se Deus criou tudo, por que Ele escolheu logo este povo para a sua preferência em detrimento dos outros? Lendo a Bíblia só podemos concluir que Deus se enganava o tempo todo e não tinha o mínimo de discernimento e juízo sobre Sua criação.
Voltemos à guerra. Juntaram 12.000 para atacar os midianitas, mataram todos os homens e levaram para o acampamento as mulheres, os animais, e os bens dos vencidos: Números, 31:9: “Porém, os filhos de Israel levaram presas as mulheres dos midianitas e as suas crianças; também levaram todos os seus animais e todo o seu gado, e todos os seus bens.” E vejam agora que pessoa bondosa era Moisés: Números, 31:11-18: “E tomaram todo o despojo e toda a presa de homens e de animais. E trouxeram a Moisés e a Eleazar, o sacerdote, e à congregação dos filhos de Israel, os cativos, e a presa, e o despojo, para o arraial, nas campinas de Moabe, que estão junto ao Jordão, na altura de Jericó. Porém Moisés e Eleazar, o sacerdote, e todos os príncipes da congregação, saíram a recebê-los fora do arraial. E indignou-se Moisés grandemente contra os oficiais do exército, capitães dos milhares e capitães das centenas, que vinham do serviço da guerra. E Moisés disse-lhes: Deixastes viver todas as mulheres? Eis que estas foram as que, por conselho de Balaão, deram ocasião aos filhos de Israel de transgredir contra o SENHOR no caso de Peor; por isso houve aquela praga entre a congregação do SENHOR. Agora, pois, matai todo o homem entre as crianças, e matai toda a mulher que conheceu algum homem, deitando-se com ele. Porém, todas as meninas que não conheceram algum homem, deitando-se com ele, deixai-as viver para vós.” É isso mesmo que está escrito, pasmem! Moisés manda matar as crianças do sexo masculino, as idosas, todos com exceção das meninas virgens para poder servi-los!
Após esta passagem, inicia a narrativa das regras de partilha dos despojos, e podemos perceber quão rica era a terra dos midianitas que esses loucos devastaram. A regra da partilha era a seguinte: de todos os despojos, uma metade iria para a congregação e a outra para os soldados. Da parte dos soldados seria retirado a parte de Deus(???). O total foi: 675.000 ovelhas, 72.000 bois, 61.000 jumentos e 32.000 meninas virgens. Sobrou para Deus(???) 675 ovelhas, 72 bois, 61 jumentos e 32 meninas virgens. Eu gostaria realmente de saber o que Deus faria ou fez com os despojos. Além disso, e é importante citar, ainda há as jóias e 16.750 siclos de ouro. Siclo era uma antiga unidade de peso (Shekel em hebraico) que correspondia a aproximadamente 11 gramas, portanto a parte de Deus nos despojos de guerra foi de 184,25 kg de ouro. Se a parte de Deus é a milésima parte do total, como podemos constatar, significa que o saque total ao ouro dos midianitas foi de 184.250 kg. Nada mal para povoado algum. Na cotação atual significa só em ouro o valor de R$ 12.025.960,65!
Após o massacre dos midianitas, os filhos de Rúbem e os filhos de Gade vão até Moisés pedir para que fiquem nestas terras, já que tinham gado e riquezas suficientes para bem viverem, e não queriam continuar avançando e passar o Jordão. Então a ira do SENHOR se acendeu no mesmo dia, e esses desertores vagaram quarenta anos no deserto para consumir toda aquela geração. Números, 32:13: “Assim se acendeu a ira do SENHOR contra Israel, e fê-los andar errantes pelo deserto quarenta anos até que se consumiu toda aquela geração, que fizera mal aos olhos do SENHOR.” Então resolveram que fariam cidades para as mulheres e crianças, e continuariam a guerrear em nome do SENHOR. Tomaram mais duas cidades, pra não perderem o costume, e continuaram a barbárie. Passaram por diversos acampamentos e nas campinas de Moabe, junto ao Jordão, na direção de Jericó, disse o SENHOR: Números, 33:52: “Lançareis fora todos os moradores da terra de diante de vós, e destruireis todas as suas pinturas; também destruireis todas as suas imagens de fundição, e desfareis todos os seus altos;” E se não fizerem... Números, 33:55-56: “Mas se não lançardes fora os moradores da terra de diante de vós, então os que deixardes ficar vos serão por espinhos nos vossos olhos, e por aguilhões nas vossas virilhas, e apertar-vos-ão na terra em que habitardes. E será que farei a vós como pensei fazer-lhes a eles.” O negócio era massacrar e aniquilar completamente. Vemos em obras como A Arte da Guerra de Sun Tzu, ou O Príncipe de Maquiavel os procedimentos para com os povos vencidos, a prudência no tratamento para com eles e seus soldados, formas para estes se tornarem leais e úteis aos conquistadores, mas o Deus judeu que tudo sabe, desconhece esta sabedoria. A sabedoria para ELE é aniquilar completamente o inimigo.
Passagem muito interessante para quem se dispuser a ler é o capítulo 35 de Números. Nele, Deus começa a partilha das cidades a serem invadidas antes de atravessarem o Jordão. São 48 cidades para os levitas e seis cidades de refúgio. Cidades de refugio serão aquelas para onde irão os homicidas a serem julgados, e Deus estabelece as leis que devem ser seguidas. Obviamente os homicidas dolosos são condenados à morte. Mas o que mais me intriga é: não são todos eles homicidas em nome do próprio Deus? Ao fim de números, presenciamos uma explicação sobre as regras da partilha das heranças das terras a serem conquistadas, que estas não devem sair de suas próprias tribos, e entramos em Deuteronômio, ainda esperando a invasão ao outro lado do Jordão.
Deuteronômio começa com batedores indo ao vale do Escol para verem as terras a serem conquistadas. Mais uma vez os judeus se consideram incapazes de conquistar cidades tão grandes e fortificadas – mesmo com um exército daquele tamanho – e mais uma vez acende a ira de Deus, que diz que após tanto caminharem continuam sem acreditar..., aquela mesma conversa. Só que desta vez Deus fala a Moisés para preparar Josué para a liderança, pois ele irá morrer antes de conquistarem todas as terras. Deus, irado mais uma vez com a descrença, permite que os amorreus derrotem os judeus de Seir até Horma.
Deus, que não é nada bobo, e é muito rico, fala para Moisés contornar o caminho até a terra prometida, mas não se meter com os filhos de Esaú, pois é de lá que sairá a comida que Ele comprará para o Seu povo. Não entraram em guerra também com os habitantes de Moabe, pois eles eram grandes e fortes, e Deus já tinha prometido a terra a outros. Passaram por Ar, terra dos filhos de Amom, estes também eram grandes e fortes, não mexeram com eles.
Em Hesbom a coisa começa a ficar interessante. Deus fala que vai colocar o medo a Moisés na mente do povo para que se angustiassem. Então foram mensageiros a Siom, rei de Hesbom, com mensagens de paz, pedindo-lhe que deixassem os judeus passarem pela cidade, e que comprariam comida e água dele. Diante da recusa de Siom, Deus acha a brecha para o implacável ataque. E o resultado? É difícil imaginar? Deuteronômio, 2:33-36: “E o SENHOR nosso Deus no-lo entregou, e o ferimos a ele, e a seus filhos, e a todo o seu povo. E naquele tempo tomamos todas as suas cidades, e cada uma destruímos com os seus homens, mulheres e crianças; não deixamos a ninguém. Somente tomamos por presa o gado para nós, e o despojo das cidades que tínhamos tomado. Desde Aroer, que está à margem do ribeiro de Arnom, e a cidade que está junto ao ribeiro, até Gileade, nenhuma cidade houve que de nós escapasse; tudo isto o SENHOR nosso Deus nos entregou.”. Atenção para esta parte, pois desta vez, nem as meninas virgens foram poupadas. Logo em seguida foram a caminho de Basã. Acham que o resultado foi diferente? Deuteronômio, 3:1-7: “Depois nos viramos e subimos o caminho de Basã; e Ogue, rei de Basã, nos saiu ao encontro, ele e todo o seu povo, à peleja em Edrei. Então o SENHOR me disse: Não o temas, porque a ele e a todo o seu povo, e a sua terra, tenho dado na tua mão; e far-lhe-ás como fizeste a Siom, rei dos amorreus, que habitava em Hesbom. E também o SENHOR nosso Deus nos deu na nossa mão a Ogue, rei de Basã, e a todo o seu povo; de maneira que o ferimos até que não lhe ficou sobrevivente algum. E naquele tempo tomamos todas as suas cidades; nenhuma cidade houve que lhes não tomássemos; sessenta cidades, toda a região de Argobe, o reino de Ogue em Basã. Todas estas cidades eram fortificadas com altos muros, portas e ferrolhos; e muitas outras cidades sem muros. E destruímo-las como fizemos a Siom, rei de Hesbom, destruindo todas as cidades, homens, mulheres e crianças. Porém todo o gado, e o despojo das cidades, tomamos para nós por presa.” Após todo este morticínio, começa a partilha dos despojos.
Em um raro momento de paz, Moisés pede a Deus que olhe para outras terra – o Líbano inclusive – e Deus se indigna – não sei por que – e manda Moisés se calar. Logo após, diz pra Moisés olhar pra todos os lados com atenção, pois ele não irá ver mais nada, e preparar Josué para assumir a liderança. Bela maneira de anunciar a morte! Imaginemos o diálogo: - Deus, daquele lado de lá deve ter terras muito boas, hein? O Senhor não acha que a gente podia invadir, matar todo mundo, roubar tudo pra gente?! E Deus reponde: - Ih! Moisés...é uma boa, sim... mas faz o seguinte: presta bem a atenção, olhe bastante, e chama lá o Josué, porque você não vai chegar até lá não! Moisés então lembra toda a trajetória desde o Egito, relembra todas as leis, várias e várias vezes, amaldiçoa e pragueja contra todos os não-judeus, amaldiçoa os judeus que descumprirem as regras, bendiz os que cumprirem... isso pelos trinta capítulos restantes do Deuteronômio, e por fim morre.
Inicia Josué, a liderança e o livro. E logo de cara ele manda dois espiões para ver Jericó. Os espiões, antes de mais nada, foram à casa de uma prostituta, Raabe, e lá dormiram..., mas a serviço secreto de Josué. O rei de Jericó ficou sabendo, e foi tirar satisfação na casa da prostituta. Lá chegando, Raabe escondeu os espiões e falou ao rei que eles já haviam ido embora. O rei acreditou e foi embora com seus soldados. A prostituta, vendo que as coisas estavam sem perigo, diz aos espiões que já sabia das façanhas bélicas dos judeus, e seu Deus guerreiro, e pede que após a invasão, que ela já dava como certa, poupassem a sua vida e a de seus pais em gratidão àquele ato. Belo negócio, visto que em todos os outros lugares os judeus mataram todo mundo. E combinaram que a hora da iminente invasão ela se fechasse em casa com sua família e pusesse um cordão vermelho na janela em que eles escapariam para que ninguém atacasse aquela casa.
Os espiões voltaram e contaram toda a história a Josué. Falaram também que todo o povo de Jericó temia o exército do SENHOR, também, não era para menos, visto o que eles faziam por onde passavam. Josué começa os preparativos para a invasão, com todos aqueles cerimoniais, manda circuncisar todos os que ainda não o haviam sido, Deus novamente abre as águas para o exército passar, agora as águas do Jordão. Ouvindo falar que novamente Deus deu “uma mãozinha” ao exército..., Josué,5:1: “E sucedeu que, ouvindo todos os reis dos amorreus, que habitavam deste lado do Jordão, ao ocidente, e todos os reis dos cananeus, que estavam ao pé do mar, que o SENHOR tinha secado as águas do Jordão, de diante dos filhos de Israel, até que passassem, desfaleceu-se-lhes o coração, e não houve mais ânimo neles, por causa dos filhos de Israel.” Enfim, chegaram às muralhas de Jericó.
Apareceu um anjo e ordenou a marcha em volta das muralhas, com o toque das trombetas e tudo o mais. Eles assim fizeram, as muralhas caíram e 40.000 soldados invadiram a pobre Jericó. No meio da confusão, Josué mandou os espiões salvarem a prostituta e sua família, conforme prometido, e todo o resto...Josué, 6:21: “ E tudo quanto havia na cidade destruíram totalmente ao fio da espada, desde o homem até à mulher, desde o menino até ao velho, e até ao boi e gado miúdo, e ao jumento.” Desta vez nem o gado eles livraram, pois o intuito era outro. Acho que o setor pecuário judeu já estava em superávit, porém o setor de metais não: Josué, 6:24: “Porém a cidade e tudo quanto havia nela queimaram a fogo; tão somente a prata, e o ouro, e os vasos de metal e de ferro, deram para o tesouro da casa do SENHOR.”
O que realmente me intriga, e na Bíblia não há uma palavra sobre isso, é o que fizeram de tão errado cidades tão prósperas para ter fim tão cruel. Não é uma guerra comum. Uma contenda entre exércitos, e o vencedor saqueava os vencidos, como ocorreram inúmeras vezes na história da humanidade. Era um massacre completo! Em uma passagem posterior na Bíblia, é contada a história de Sodoma e Gomorra, que foram aniquiladas instantaneamente pelo “fogo” do SENHOR. Acho que tiveram um fim menos doloroso que todas essas cidades massacradas por soldados, pelos fios de suas espadas. Por que Deus permitiu, e ordenou tão terrível sorte a outros filhos DELE também? Pela forma como é contada, mais parece atos de um ser extremamente bélico e diabólico, no sentido mais sombrio da palavra.
Após a aniquilação de Jericó, ocorre um fato curioso logo no início do capítulo 7: Josué, 7:1: “E transgrediram os filhos de Israel no anátema; porque Acã filho de Carmi, filho de Zabdi, filho de Zerá, da tribo de Judá, tomou do anátema, e a ira do SENHOR se acendeu contra os filhos de Israel.” Acã tomou do anátema e Deus fica irado com todo mundo, não é de se estranhar, depois de tanta matança qualquer coisa é motivo de ira. Anátema, no sentido arcaico, era uma oferta a Deus cujo objetivo era o agradecimento por uma vitória ou favorecimento. Para o cristianismo, é o mais severo caso de excomunhão, ocorrendo apenas nos casos mais horríveis de heresia contra a fé. No caso em questão, Acã roubou prata e ouro que era o espólio de Deus, o que o irritou tanto. Josué, talvez ainda sem saber deste caso, manda alguns homens de Jericó – que não mais existe – a Ai, para sondar sobre a invasão desta localidade. Os homens voltaram, e falaram que era um lugar muito pequeno, que não precisaria de mais de 3.000 homens para dar conta do serviço. Foram lá então este número de homens, porém se deram mal, pois os soldados de Ai os colocaram pra fugir e feriram 36 judeus. Vejam o resultado desta passagem: Josué, 7:5-12: “E os homens de Ai feriram deles uns trinta e seis, e os perseguiram desde a porta até Sebarim, e os feriram na descida; e o coração do povo se derreteu e se tornou como água. Então Josué rasgou as suas vestes, e se prostrou em terra sobre o seu rosto perante a arca do SENHOR até à tarde, ele e os anciãos de Israel; e deitaram pó sobre as suas cabeças. E disse Josué: Ah! Senhor Deus! Por que, com efeito, fizeste passar a este povo o Jordão, para nos entregares nas mãos dos amorreus para nos fazerem perecer? Antes nos tivéssemos contentado em ficar além do Jordão! Ah, SENHOR! Que direi? Pois Israel virou as costas diante dos inimigos! Ouvindo isto, os cananeus, e todos os moradores da terra, nos cercarão e desarraigarão o nosso nome da terra; e então que farás ao teu grande nome? Então disse o SENHOR a Josué: Levanta-te; por que estás prostrado assim sobre o teu rosto? Israel pecou, e transgrediram a minha aliança que lhes tinha ordenado, e tomaram do anátema, e furtaram, e mentiram, e debaixo da sua bagagem o puseram. Por isso os filhos de Israel não puderam subsistir perante os seus inimigos; viraram as costas diante dos seus inimigos; porquanto estão amaldiçoados; não serei mais convosco, se não desarraigardes o anátema do meio de vós.”. Josué faz todo esse drama por causa de 36 feridos?! Eles estão em guerra sem parar a 40 anos desde que saíram do Egito e se lamentam desta forma por conta de 36 FERIDOS!!!!????? É inacreditável! Voltemos à passagem e vejamos a conclusão, porém, sabendo tudo o que sabemos até agora, quais seriam as possibilidades de desfecho? Perdão? Óbvio que não... Josué inspeciona todas as tendas e acha o anátema com Acã. Pobre Acã...: Josué, 7:19-25: “Então disse Josué a Acã: Filho meu, dá, peço-te, glória ao SENHOR Deus de Israel, e faze confissão perante ele; e declara-me agora o que fizeste, não mo ocultes. E respondeu Acã a Josué, e disse: Verdadeiramente pequei contra o SENHOR Deus de Israel, e fiz assim e assim Quando vi entre os despojos uma boa capa babilônica, e duzentos siclos de prata, e uma cunha de ouro, do peso de cinqüenta siclos, cobicei-os e tomei-os; e eis que estão escondidos na terra, no meio da minha tenda, e a prata por baixo dela. Então Josué enviou mensageiros, que foram correndo à tenda; e eis que tudo estava escondido na sua tenda, e a prata por baixo. Tomaram, pois, aquelas coisas do meio da tenda, e as trouxeram a Josué e a todos os filhos de Israel; e as puseram perante o SENHOR. Então Josué, e todo o Israel com ele, tomaram a Acã filho de Zerá, e a prata, e a capa, e a cunha de ouro, e seus filhos, e suas filhas, e seus bois, e seus jumentos, e suas ovelhas, e sua tenda, e tudo quanto ele tinha; e levaram-nos ao vale de Acor. E disse Josué: Por que nos perturbaste? O SENHOR te perturbará neste dia. E todo o Israel o apedrejou; e os queimaram a fogo depois de apedrejá-los.” Não apenas mataram Acã, mas também seus filhos e filhas, e destruíram todos os seus bens.
Esqueceram de Ai e os soldados que feriram 36 judeus? Acham que ia ficar por isso mesmo ou a vingança seria implacável? Josué resolve fazer uma emboscada. Leva 30.000 homens durante a madrugada e cerca Ai. Reserva um parte dos soldados para atrair os homens de Ai para persegui-los novamente. Quando isto ocorre, invadem e incendeiam a cidade. Leiam a barbárie: Josué, 8: 21-29: “E vendo Josué e todo o Israel que a emboscada tomara a cidade, e que a fumaça da cidade subia, voltaram, e feriram os homens de Ai. Também aqueles da cidade lhes saíram ao encontro, e assim ficaram no meio dos israelitas, uns de uma, e outros de outra parte; e feriram-nos, até que nenhum deles sobreviveu nem escapou. Porém ao rei de Ai tomaram vivo, e o trouxeram a Josué. E sucedeu que, acabando os israelitas de matar todos os moradores de Ai no campo, no deserto, onde os tinham seguido, e havendo todos caído ao fio da espada, até serem consumidos, todo o Israel se tornou a Ai e a feriu ao fio de espada. E todos os que caíram aquele dia, assim homens como mulheres, foram doze mil, todos moradores de Ai. Porque Josué não retirou a sua mão, que estendera com a lança, até destruir totalmente a todos os moradores de Ai. Tão-somente os israelitas tomaram para si o gado e os despojos da cidade, conforme à palavra do SENHOR, que tinha ordenado a Josué. Queimou, pois, Josué a Ai e a tornou num montão perpétuo, em ruínas, até ao dia de hoje. E ao rei de Ai enforcou num madeiro, até à tarde; e ao pôr do sol ordenou Josué que o seu corpo fosse tirado do madeiro; e o lançaram à porta da cidade, e levantaram sobre ele um grande montão de pedras, até o dia de hoje.”
Depois de ouvir as atrocidades em Jericó e Ai, os moradores de Gibeom “usaram de astúcia, e foram e se fingiram embaixadores, e levando sacos velhos sobre os seus jumentos, e odres de vinho, velhos, e rotos, e remendados; E vieram a Josué, ao arraial, a Gilgal, e disseram a ele e aos homens de Israel: Viemos de uma terra distante; fazei, pois, agora, acordo conosco.” Três dias depois os judeus descobriram que eles eram de terras vizinhas e tinham ido até eles apenas espionar. Josué fica indignado com a artimanha – ele havia feito a mesma coisa em Jericó – e os homens falaram que se disfarçaram para tentar escapar da morte, pois haviam ouvido falar de Jericó e Ai e temiam o mesmo destino. Josué poupou-lhes a vida, mas os tornaram escravos.
Após esta passagem inicia-se um verdadeiro genocídio. Acompanhem com bastante atenção: Josué, 10:1-6: “E sucedeu que, ouvindo Adoni-Zedeque, rei de Jerusalém, que Josué tomara a Ai, e a tinha destruído totalmente, e fizera a Ai, e ao seu rei, como tinha feito a Jericó e ao seu rei, e que os moradores de Gibeom fizeram paz com os israelitas, e estavam no meio deles, Temeram muito, porque Gibeom era uma cidade grande, como uma das cidades reais, e ainda maior do que Ai, e todos os seus homens valentes. Pelo que Adoni-Zedeque, rei de Jerusalém, enviou a Hoão, rei de Hebrom, e a Pirão, rei de Jarmute, e a Jafia, rei de Laquis e a Debir, rei de Eglom, dizendo: Subi a mim, e ajudai-me, e firamos a Gibeom, porquanto fez paz com Josué e com os filhos de Israel. Então se ajuntaram, e subiram cinco reis dos amorreus, o rei de Jerusalém, o rei de Hebrom, o rei de Jarmute, o rei de Laquis, o rei de Eglom, eles e todos os seus exércitos; e sitiaram a Gibeom e pelejaram contra ela. Enviaram, pois, os homens de Gibeom a Josué, ao arraial de Gilgal, dizendo: Não retires as tuas mãos de teus servos; sobe apressadamente a nós, e livra-nos e ajuda-nos, porquanto todos os reis dos amorreus, que habitam na montanha, se ajuntaram contra nós.” Josué, que odiava a paz e não podia perder uma guerra, vai com seus homens, e Deus, para mais uma boa peleja. Expulsaram, com grande matança, os inimigos de Gibeom, com Deus os massacrando jogando pedras lá do céu. Neste momento, Josué usa um golpe baixo: pede para Deus parar o Sol e a lua, para aumentar o dia para poder matar mais gente. Deus assim o faz, e a matança continuou. Houve uma pausa na contenda, e alguém contou a Josué que os cinco reis estavam escondidos em uma cova em Maquedá. Josué ordena que os pegassem e os trouxessem ao arraial. Assim fizeram e Josué mandou enforcá-los. Inicia-se uma passagem extremamente repetitiva, farei a transcrição da primeira, e ao final, só indicarei as cidades arrasadas: Josué, 10:28-29: “E naquele mesmo dia tomou Josué a Maquedá, e feriu-a a fio de espada, bem como ao seu rei; totalmente a destruiu com todos que nela havia, sem nada deixar; e fez ao rei de Maquedá como fizera ao rei de Jericó. Então Josué e todo o Israel com ele, passou de Maquedá a Libna e pelejou contra ela.” O mesmo texto se repete para Libna, Laquis, Gezer, Eglom, Hebrom, Debir, cidades “totalmente destruídas”. E o desfecho do capítulo 10 é triunfal: Josué, 10:40: “Assim feriu Josué toda aquela terra, as montanhas, o sul, e as campinas, e as descidas das águas, e a todos os seus reis; nada deixou; mas tudo o que tinha fôlego destruiu, como ordenara o SENHOR Deus de Israel.” Era literalmente vital conter povo tão beligerante, então o rei de “Hazor, enviou mensageiros ao rei de Madom, ao rei de Sinrom, e ao rei de Acsafe; e aos reis, que estavam ao norte, nas montanhas, e na campina para o sul de Quinerete, e nas planícies, e nas elevações de Dor, do lado do mar, ao cananeu do oriente e do ocidente; e ao amorreu, e ao heteu, e ao perizeu, e ao jebuseu nas montanhas; e ao heveu ao pé de Hermom, na terra de Mizpá.” Saíram todos com seus exércitos, cavalos, carros, tudo o que puderam juntar para bloquear o expansivismo judeu. O resultado já nos é bastante conhecido: Houve o combate, Josué matou todos, não sobrou ninguém. Não satisfeito, foi até as cidades daqueles reis que se uniram para combatê-lo e acabou com tudo, “nada do que tinha fôlego deixaram com vida”. Obviamente, para não esquecermos, os despojos e o gado eles pegavam, mesmo havendo um mandamento proibindo roubar. E, por fim, Josué, 11:16-17: “Assim Josué tomou toda aquela terra, as montanhas, e todo o sul, e toda a terra de Gósen, e as planícies, e as campinas, e as montanhas de Israel, e as suas planícies. Desde o monte Halaque, que sobe a Seir, até Baal-Gade, no vale do Líbano, ao pé do monte de Hermom; também tomou todos os seus reis, e os feriu e os matou.” Josué ainda acaba com os aniquins de Hebrom, de Debir, de Anabe e de todas as montanhas de Judá e de todas as montanhas de Israel. Josué os destruiu totalmente com as suas cidades. E finalmente para de guerrear.
No capítulo 12, há um balanço das terras conquistadas por Moisés e Josué: Moisés: “desde o ribeiro de Arnom, até ao monte de Hermom, e toda a planície do oriente; Siom, rei dos amorreus, que habitava em Hesbom e que dominava desde Aroer, que está à beira do ribeiro de Arnom, e desde o meio do ribeiro, e a metade de Gileade, e até ao ribeiro de Jaboque, o termo dos filhos de Amom; E desde a campina até ao mar de Quinerete para o oriente, e até ao mar da campina, o Mar Salgado para o oriente, pelo caminho de Bete-Jesimote; e desde o sul, abaixo de Asdote-Pisga; Como também o termo de Ogue, rei de Basã que era do restante dos gigantes e que habitava em Astarote e em Edrei; e dominava no monte Hermom, e em Salcá, e em toda a Basã, até ao termo dos gesureus e dos maacateus, e metade de Gileade, termo de Siom, rei de Hesbom.”
Josué: “desde Baal-Gade, no vale do Líbano, até ao monte Halaque, que sobe a Seir; o que havia nas montanhas, e nas planícies, e nas campinas, e nas descidas das águas, e no deserto, e para o sul: o heteu, o amorreu, e o cananeu, o perizeu, o heveu, e o jebuseu; o rei de Jericó; o rei de Ai, que está ao lado de Betel; o rei de Jerusalém; o rei de Hebrom; o rei de Jarmute; o rei de Laquis;o rei de Eglom; o rei de Geser; o rei de Debir; o rei de Geder; o rei de Hormá; o rei de Harade; o rei de Libna; o rei de Adulão; o rei de Maquedá; o rei de Betel ;o rei de Tapua; o rei de Hefer; o rei de Afeque; o rei de Lassarom; o rei de Madom; o rei de Hazor; o rei de Sinrom-Meron; o rei de Acsafe; o rei de Taanaque; o rei de Megido; o rei de Quedes; o rei de Jocneão do Carmelo; o rei de Dor no outeiro de Dor; o rei de Goiim em Gilgal; o rei de Tirza; trinta e um reis ao todo.”
O que dizer do mandamento “não matarás”?
Escuto quase todos os dias algo a respeito da bíblia. Na verdade, todos nós, ocidentais, escutamos crentes falando a respeito, pessoas temendo, respeitando, leigos ou não. Assistimos a filmes bíblicos, ou com citações dela – lembram das cenas clássicas de tribunal, alguém jurando dizer a verdade com a mão sobre a bíblia? – enfim, para a imensa maioria de nós a bíblia é tida como um livro infalível. E isso nos é enraizado desde a infância, em nosso cotidiano. Claro que muitos escritores de diversas épocas, religiosos ou não, já escreveram a criticando duramente, alguns mais que outros, vide O Anticristo, de Nietsche, ou Sobre a Religião, de Marx, entre outras, ou mesmo Freud, em várias de suas obras (de forma mais sutil). Mas a maioria não leu, ou não entendeu, e as críticas feitas não venceram o medo e o respeito impetrado por séculos e séculos.
Citei especificamente esses dois últimos filósofos por serem judeus, e que tiveram mentes das mais brilhantes da história. Meu intuito não é maldizer o povo judeu. Na verdade, é mais um exercício pessoal de leitura de algo que ouvimos falar, mas não buscamos na fonte. A maioria das pessoas que eu escuto falar qualquer coisa sobre a Bíblia, tais como “é o livro sagrado”, ou “foi escrito por inspiração de Deus”, ou “é a palavra de Deus”, ou qualquer outra coisa parecida, quando eu indago se já leram me respondem que não, ou então “alguns trechos”, ou então que ouviram o pastor ou o padre ler uma parte no culto ou na missa. Para falar bem a verdade mesmo, eu nunca ouvi alguém dizer que realmente leu toda a Bíblia. Creio, infelizmente, que o medo e o respeito que por gerações e gerações foi imposto pela religião fazem com que, mesmo que essas pessoas leiam a Bíblia, não a vejam como um livro escrito por homens, há milênios, e que, devido a isso, seja passível de enganos, exageros, desconhecimentos de causas e efeitos que só seriam descobertos muito tempo depois, livre de dogmas e características geográficas. Um exemplo: se Moisés fosse japonês, e tivesse a abundância de alimentos marinhos, os mandamentos proibiriam os crustáceos, os peixes de couro, os moluscos? Qual seria o propósito deste mandamento? Com certeza, para um povo do deserto, o simples tempo de locomoção destes alimentos do local de origem até o consumo, além do calor, já o putrefariam e certamente fariam muito mal. Como explicar isto em termos científicos há uns cinco mil anos? Simplesmente a explicação é: Deus não permite.
Não há como não observar na Bíblia o caráter segregacionista. Tanto no antigo testamento, como nos evangelhos e apocalipse, a “salvação” é sempre para o judeu e depois para aqueles que acreditam em Cristo. Tudo o que não estiver enquadrado nesses dois quesitos sofrerá castigos dos mais terríveis. E não podemos esquecer do islã, que bebe da mesma fonte original. Para todos estes, tudo o que estiver fora do seu grupo é infiel e não cairá nas graças de Deus. O problema desta filosofia segregacionista é geralmente, aliás, frequentemente, sair do campo unicamente das ideias e entrar no da prática. Desde a origem a guerra não cessa, como já analisamos. As possibilidades de interpretação da Bíblia são inúmeras, isso sem contar as traduções, e a cada interpretação, o germe da segregação se impõe, pois está entranhado nela própria. Judeu guerreia contra seus vizinhos muçulmanos; católicos atacam luteranistas, judeus, não-católicos, muçulmanos, ortodoxos; protestantes atacam católicos, muçulmanos contra judeus, cristãos; etc, etc, etc... quantas vezes não presenciamos estes fatos na história? Cada um dos ramos oriundos desta raiz monoteísta se considera detentor legítimo da verdade das escrituras, e os demais são infiéis, hereges, não estão entre os “escolhidos”. A guerra sempre estará presente, é intrínseca.
Há como mensurar o mal à humanidade causado pelas interpretações bíblicas? Milênios de perseguições, guerras, massacres, castigos, angústias, exílios, mentiras, enganos, medos, julgamentos... Há como mensurar?
Existe um conceito budista que é muito conhecido erroneamente entre nós ocidentais. É o conceito de Karma. É uma palavra sânscrita que significa literalmente “ação”. Normalmente a usamos para nos referir a algo ruim, por exemplo: “Aquele problema é o meu carma!”. Mas na verdade o karma pode ser bom. Karma é o resultado do que fazemos. Voltando à Bíblia, nos evangelhos, é o correspondente do que Cristo diz na passagem “colher o que semear”. Independente de qualquer interpretação religiosa – aliás é a síntese budista – faz um imenso sentido. É transcendental: somos responsáveis pelas consequências dos nossos atos. Teremos paz se a cultivarmos, teremos guerra idem. Teremos justiça, bondade, fraternidade, prosperidade, e todas as características universalmente “boas” apenas se as cultivarmos, e se não as cultivarmos, não as teremos, tanto individual como coletivamente. E literalmente ponto final. É impressionantemente simples.
Encerro este texto rogando ao Deus universal, ao verdadeiro Deus; que nos deu uma natureza perfeita, um Cosmos perfeito, que pode durante bilhões e bilhões de anos se desenvolver através de construções e destruições infinitas, renovações e renovações de matérias de todas as espécies, até gerar a nós, homens, e nos dotar de inteligência para podermos entender, apreciar e amar toda essa perfeita obra, da qual fazemos parte; que ilumine e dê paz a todos os povos. Especialmente aos judeus, que recentemente foram perseguidos por Hitler, com sua insanidade, e tiveram uns seis milhões de irmãos mortos.
Mas rogo também, Deus, que ilumine e conforte as almas dos 3.000 judeus mortos por adorarem, sem saber que estavam fazendo tanto mal, o bezerro; ao homem que apanhava lenha ao sábado; à cidade inteira de Arade; à população dos amorreus de Arnom até Jaboque; à toda população de Jazer; de Basã; a todos os midianitas, e suas 32.000 meninas virgens escravizadas; à todas as cidades entre Arden e Gileade, no Hesbom; à todas as 60 cidades da região de Argobe; a Jericó; a Acã e seus filhos; à cidade de Ai; à Maquedá; à Libna; à Láquis; à Gezer; à Eglom; ao Hebrom; à Debir; à Geder; à Hormá; à Harade; à Adulão; à Betel; à Tapua; à Hefer; à Afeque; à Lassamom; à Madom; à Hazor; à Sinrom-Meron; à Acsafe; à Taanaque; à Megido; à Quedes; à Jacneão; à Dor; à Goiime e à Tirza; que tiveram “tudo o que tinha fôlego” “completamente destruído” pelos judeus “recentemente” também, a seus olhos, já que sua noção de tempo é infinita.
Amém.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

O Lobo da Estepe - 2

Vejam que trecho sensacional e contemporêneo!:
"Você, Harry, sempre foi um artista e um pensador, um homem cheio de fé e de alegria, sempre ao encalço do grande e do eterno, nunca se contentando com o bonito e o mesquinho. Mas quanto mais foi despertado pela vida e conduzido para dentro de si mesmo, tanto maior se tornou sua necessidade, tanto mais fundo mergulhou no sofrimento, na timidez, no desespero; mergulhou até o pescoço, e tudo o que no passado conheceu, amou e venerou como belo e santo, toda a sua fé de então nos homens e em nosso elevado destino, nada pôde ajudá-lo, tudo perdeu o valor e se fez em pedaços. Sua fé não encontrou mais ar que respirasse. E a morte por asfixia é uma morte muito dura. Não é verdade, Harry? Não é este o seu destino?
(...)Você trazia no íntimo uma imagem da vida, uma fé, urna exigência; estava disposto a feitos, a sofrimentos e sacrifícios, e logo aos poucos notou que o mundo não lhe pedia nenhuma ação, nenhum sacrifício nem algo semelhante; que a vida não é nenhum poema épico, com rasgos de heróis e coisas parecidas, mas um salão burguês, no qual se vive inteiramente feliz com a comida e a bebida, o café e o tricô, o jogo de cartas e a música de rádio. E quem aspira a outra coisa e traz em si o heróico e o belo, a veneração pelos grandes poetas ou a veneração pelos santos, não passa de um louco ou de um Quixote. Pois bem, meu amigo, comigo também foi assim! eu era uma jovem bem dotada, com vocação para viver dentro de um elevado padrão, para esperar muito de mim mesma e para realizar grandes feitos. Poderia ter um belo futuro, ser a esposa de um rei, a amante de um revolucionário, a irmã de um gênio, a mãe de um mártir. E a vida só me permitiu ser uma cortesã de mediano bom gosto, o que já se vai tornando bastante difícil para mim! Foi isso o que me aconteceu. Fiquei algum tempo desconsolada e procurei com afinco a culpa em mim mesma. A vida, pensava eu, sempre acaba tendo razão, e se a vida se ria dos meus belos sonhos, pensava, era porque meus sonhos tinham sido estúpidos e irracionais. Mas isso não me valeu de nada. Mas como tivesse bons olhos e ouvidos, e, além disso, fosse curiosa, examinei a vida com certa atenção, observei meus vizinhos e conhecidos, mais de cinqüenta pessoas e destinos, e percebi então, Harry, que meus sonhos estavam certos, estavam mil vezes certos, assim como os seus. Mas a vida, a realidade, não tinha razão. O fato de uma mulher da minha classe não ter alternativa senão envelhecer de uma maneira insensata e pobremente junto a uma máquina de escrever a serviço de um capitalista, ou casar-se com ele por seu dinheiro ou converter-se numa espécie de meretriz, era tão injusto quanto o de um homem como você, solitário, tímido e. desesperado, ter de recorrer à navalha de barbear. Talvez que a miséria em mim fosse mais material e moral, e em você mais espiritual; mas o caminho era o mesmo. Pensa que eu não pude reconhecer sua angústia diante do foxtrote, sua repugnância pelos bares e pelos dancings, sua hostilidade para com a música de jazz e tudo o mais? Compreendia e muito bem, como compreendia seu horror pela política, sua tristeza pelo palavreado vão e a conduta irresponsável dos partidos e da imprensa; seu desespero diante da guerra, as passadas e as futuras; pela maneira como hoje se pensa, se lê, se edifica, se compõe música, se celebram as festas e se educa! Você tem razão, Lobo da Estepe, mil vezes razão, e contudo terá de perecer. Vive demasiadamente faminto e cheio de desejos para um mundo tão singelo, tão cômodo, que se contenta com tão pouco; para o mundo de hoje em dia, que lhe cospe em cima, você tem uma dimensão a mais. Quem quiser hoje viver e satisfazer-se com sua vida, não pode ser uma pessoa assim como você e eu. Quem quiser música em vez de balbúrdia, alegria em vez de prazer, alma em vez de dinheiro, verdadeiro trabalho em vez de exploração, verdadeira paixão em vez de jogo, não encontrará guarida neste belo mundo...
(...) Nossos líderes trabalham sem descanso e com êxito na preparação da próxima guerra, e enquanto isso nós todos dançamos o fox, gastamos dinheiro e comemos confeitos; numa época assim o mundo sem dúvida parece bastante resignado. Esperemos que venham dias melhores, mais ricos, mais amplos, mais profundos. Mas isso pouco nos ajudará. E talvez sempre tenha sido assim...
(...) Não sei, ninguém sabe. Mas isso também é indiferente. Agora já estou pensando em seu predileto, naquele, meu amigo, de quem você me falou tantas vezes e cujas cartas me leu: em Mozart. Que se passou com ele? Quem dominava o mundo em sua época, quem dava as cartas, quem imprimia o tom e tinha valor? Mozart ou os negociantes, Mozart ou o homem comum? E de que maneira morreu e foi enterrado? Por isso creio que talvez sempre tenha sido assim e sempre será, e o que na escola chamamos de História Universal e tudo quanto dela sabemos de cor sobre os heróis, os gênios, os grandes feitos e sentimentos, tudo não passa de uma grande farsa inventada pelos mestres para fins educacionais com o intuito de manter as crianças ocupadas por um determinado número de anos. Sempre foi e será assim: o tempo e o mundo, o dinheiro e o poder pertencem aos mesquinhos e superficiais, e nada coube aos outros, aos verdadeiros homens, nada a não ser a morte.
(...) Então não é a fama. A fama existe apenas para fins de ensino, é assunto para professores. Não, não é a fama. É o que chamo de imortalidade. Os piedosos chamam-no de reino de Deus. Penso comigo: todos nós, os que desejamos demasiadamente, os que temos uma dimensão a mais não poderíamos viver se não existisse uma outra atmosfera onde respirar além da atmosfera deste mundo, se a eternidade não existisse além do tempo; e esse é o reino da Verdade. A ele pertencem a música de Mozart e os poemas dos grandes poetas que você admira; a ele pertencem os santos que operaram milagres, os que sofreram martírio e deram um grande exemplo aos homens. Mas também pertence à eternidade a imagem de um todo verdadeiro, a força de cada verdadeiro sentimento, ainda que desconhecido por todos, ainda que ninguém o consigne e o preserve para a posteridade. Na eternidade não há futuro, mas apenas o presente."

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Só para loucos. Só para os raros.

Hermann Hesse, Nobel de Literatura em 1946 escreveu uma obra fascinante em 1927: O Lobo da Estepe. História do que aflige a alma humana, crítica à burguesia, ao revanchismo alemão entre guerras (foi escrito em 1927). Foi um dos primeiros a usar argumentos freudianos na construção psicológica dos seus personagens. Talhado pelos pais à carreira de pastor protestante, rompe e se "orientaliza" após uma viagem à Índia. Autodidata, operário, livreiro, escritor... um dos raros e loucos.
O Lobo da Estepe.
"Não sei que prazeres e alegrias levam as pessoas a trens e hotéis superlotados, aos cafés abarrotados, com sua música sufocante e vulgar, aos bares e espetáculos de variedades, às Feiras Mundiais, aos Corsos. Não entendo nem compartilho essas alegrias embora estejam ao meu alcance, pelas quais milhares de outros anseiam.(...) E de fato, se o mundo tem razão, se essa música dos cafés, essas diversões em massa e esses tipos americanizados que se satisfazem com tão pouco têm razão, então estou errado, estou louco. Sou na verdade o lobo da estepe, como me digo tantas vezes - aquele animal extraviado que não encontra abrigo nem alegria nem alimento num mundo que lhe é estranho e incompreensível.
(...)Era uma vez um certo Harry, chamado o Lobo da Estepe. Andava sobre duas pernas, usava roupas e era um homem, mas não obstante era também um lobo das estepes. Havia aprendido uma boa parte de tudo quanto as pessoas de bom entendimento podem aprender, e era bastante ponderado. O que não havia aprendido, entretanto, era o seguinte: estar contente consigo e com sua própria vida.(...)para ele era indiferente saber se o lobo se havia introduzido nele por encantamento, à força de pancada ou se era apenas uma fantasia de seu espírito. O que os outros pudessem pensar a este respeito ou até mesmo o que ele próprio pudesse pensar, em nada o afetaria, nem conseguiria afetar o lobo que morava em seu interior.
Com nosso Lobo da Estepe sucedia que, em sua consciência, vivia ora como lobo, ora como homem, como acontece aliás com todos os seres mistos. Ocorre, entretanto, que quando vivia como lobo, o homem nele permanecia como espectador, sempre à espera de interferir e condenar, e quando vivia como homem, o lobo procedia de maneira semelhante. Por exemplo, se Harry, como homem, tivesse um pensamento belo, experimentasse uma sensação nobre e delicada, ou praticasse um das chamadas boas ações, então o lobo, em seu interior, arreganhava os dentes e ria e mostrava-lhe com amarga ironia o quão ridícula era aquela nobre encenação aos seus olhos de fera, aos olhos de um lobo que sabia muito bem em seu coração o que lhe convinha, ou seja, caminhar sozinho nas estepes, beber sangue vez por outra ou perseguir alguma loba.
(...)Muita gente existe que se assemelha a Harry; especialmente muitos artistas pertencem a essa classe de homens. Todas essas pessoas têm duas almas, dois seres em seu interior; há neles uma parte divina e outra satânica, há sangue materno e paterno., há capacidade para a ventura e para a desgraça, tão contrapostas e hostis como eram o lobo e o homem dentro de Harry. E esses homens, para os quais a vida não oferece repouso, experimentam às vezes, em seus raros momentos de felicidade, tanta força e tão indizível beleza, a espuma do instante de ventura emerge às vezes tão alta e deslumbradora sobre o mal da dor, que sua luz, espargindo radiância, vai atingir a outros com o seu encantamento. A isto se devem, a essa preciosa e momentânea espuma sobre o mar do sofrimento, todas aquelas obras artísticas em que o homem solitário e sofredor se eleva por uma hora tão alto sobre o seu próprio destino, que sua felicidade brilha como uma estrela, e parecem a todos os que vêem como algo eterno e como se fosse seu próprio sonho de ventura. Todas essas pessoas, sejam quais forem seus atos e obras, não têm propriamente uma vida, ou seja, sua vida carece de essência e forma, não são heróis, nem artistas, nem pensadores da maneira como os demais homens são juízes, doutores, sapateiros ou mestres; sua essência é um movimento de fluxo e refluxo, está infeliz e dolorosamente partida e é sinistra e insensata, se não estivermos propensos a ver um sentido precisamente naqueles raros acontecimentos, ações, pensamentos e obras que brilham às vezes sobre o caos de semelhante vida.
(...)Nunca se vendera por dinheiro ou vida fácil às mulheres ou aos poderosos, e mil vezes desprezara o que aos olhos do mundo representa vantagens ou regalias, a fim de salvaguardar sua liberdade. Nenhuma idéia lhe era mais odiosa e terrível do que exercer um cargo, submeter-se a horários, obedecer a ordens. Um escritório, uma repartição, uma sala de audiência eram-lhe tão odiosos quanto a morte, e o que de mais espantoso podia imaginar em sonhos seria o confinamento num quartel.(...)Só e livre, decidia sobre seus atos e omissões. Pois todo homem forte alcança indefectivelmente o que um verdadeiro impulso lhe ordena buscar.
(...)O "burguês", como um estado sempre presente da vida humana, não é outra coisa senão a tentativa de uma transigência, a tentativa de um equilibrado meio termo entre os inumeráveis pares opostos da conduta humana. Tomemos, por exemplo, qualquer dessas dualidades, como o santo e o libertino, e nossa comparação se esclarecerá em seguida. O homem tem a possibilidade de entregar-se por completo ao espiritual, à tentativa de se aproximar-se de Deus, ao ideal de santidade. Também tem, por outro lado,a possibilidade de entregar-se inteiramente à vida dos instintos, aos anseios da carne, e dirigir seus esforços no sentido de satisfazer seus prazeres momentâneos. Um dos caminhos conduz à santidade, ao martírio do espírito, à entrega a Deus. O outro caminho conduz à libertinagem, ao martírio da carne, à entrega, à corrupção. O burguês tentará caminhar entre ambos, no meio do caminho. Nunca se entregará nem se abandonará à embriaguez ou ao asceticismo; nunca será mártir nem consentirá em sua destruição, mas, ao contrário, seu ideal não é a entrega, mas a conservação do seu eu, seu esforço não significa nem santidade nem libertinagem, o absoluto lhe é insuportável, quer certamente servir a Deus, mas também entregar-se ao êxtase, quer ser virtuoso, mas quer igualmente passar bem e viver comodamente sobre a terra. Em resumo, tenta plantar-se em meio aos dois extremos, numa zona temperada e vantajosa, sem grandes tempestades ou borrascas, e o consegue ainda que à custa daquela intensidade de vida e de sentimentos que uma existência extremada e sem reservas permite. Viver intensamente só se consegue à custa do eu. Mas o burguês não aprecia nada tanto quanto o seu eu (um eu na verdade rudimentarmente desenvolvido). À custa da intensidade consegue, pois, a subsistência e a segurança; em lugar da posse de Deus cultiva a tranquilidade da consciência; em lugar do prazer, a satisfação; em lugar da liberdade, a comodidade; em lugar dos ardores mortais, uma temperatura agradável. O burguês é, pois, segundo sua natureza, uma criatura de impulsos vitais muito débeis e angustiosos, temerosa de qualquer entrega de si mesma, fácil de governar. Por isso colocou em lugar do poder a maioria, em lugar da autoridade a lei, em lugar da responsabilidade as eleições.
É compreensível que essa débil e angustiada criatura, embora existindo em número tão grande, não consiga manter-se, que, de acordo com suas particularidades, não possa representar outro papel no mundo senão o de rebanho de cordeiros entre lobos erradios. Contudo, vemos que, em tempos de governos fortes, os burgueses se vêem oprimidos contra a parede, mas nunca sucumbem; na verdade, às vezes parecem mesmo dominar o mundo. Como será possível? Nem o numeroso rebanho, nem a virtude, nem o senso comum, nem a organização serão suficientes para salvá-lo da destruição. Não há remédio no mundo que possa sustentar uma intensidade tão débil em sua origem. E, todavia, a burguesia vive, é forte e próspera. Por quê?
A resposta é a seguinte: por causa dos lobos da estepe. Com efeito, a força vital da burguesia não se apóia de maneira alguma nas particularidades dos seus membros normais, porém nas dos extraordinários e numerosos outsiders que, em consequência, a querem rodear com a vaga indecisão e elasticidade de seus ideais. Convivem sempre na burguesia uma grande multidão de naturezas fortes e selvagens."

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

"Para me condenar por meu desprezo pela autoridade, o destino me fez de mim mesmo uma autoridade"

Em 14 de março de 1879 nascia em Ulm, na região de Württemberg, hoje Alemanha, o filho de Hermann e Pauline. Refez a compreensão do universo através do seu dom de pensar diferente, e mudou completamente a visão do Cosmos. Foi admirado e homenageado por todo o mundo, pelo seu brilhantismo, complacência e coragem ante questões político-sociais.
Começou a falar muito tarde em sua infância, preocupando seus pais, que o levou ao médico por conta disso. Foi um estudante indiferente na escola primária. Em sua mocidade, o nacionalismo e a rigidez intelectual marcavam a educação européia. Conforme se viu no futuro, ele sempre detestou a rigidez em tudo... política, ensino, ciência, e se insurgia contra isso. Com cinco anos impressionava-se com a bússola, aos doze se maravilhou com um pequeno livro de geometria euclidiana, e se aprofundou por conta própria ao estudo da matemática. Nenhum dos seus professores conseguiu reconhecer sua genialidade. Aos quinze anos pressionaram-no para que deixasse o Gymnasium de Munique: "Sua mera presença compromete o respeito da classe por mim"... "Você nunca conseguirá nada!" Diziam os mestres... aceitou a "proposta e passou meses vagueando pelo norte da Itália e teve nesse momento uma das idéias mais "loucas": como veríamos o mundo se viajássemos na velocidade da luz? Sempre preferiu roupas e maneiras informais, se vivesse nas décadas de 1960 ou 1970, ou até hoje, grande parte das pessoas iriam classificá-lo como um "ripongo".
Porém a sua curiosidade pela física e admiração pelo universo sobrepujaram o desgosto pela educação formal: tentou se inscrever no Instituto Federal de Tecnologia em Zurique, na Suiça. Foi reprovado. Inscreveu-se numa escola secundária para corrigir as deficiências, e entrou no ano seguinte. Ainda era um estudante medíocre. Ressentia-se do currículo programado, fugia da sala de aula e procurava satisfazer os próprios interesses. Conseguiu diplomar-se porque seu grande amigo, Marcel Grossmann era um excelente aluno, assistia às aulas e lhe emprestava as anotações.
Manteve-se durante um tempo em empregos ocasionais e foi preterido em várias posições que pleiteara. Graças ao pai de Marcel foi trabalhar como examinador de requerimentos no serviço de patentes em Berna. Rejeitou a nacionalidade germânica e se tornou cidadão suiço. Casou-se com a namorada do colégio. Logo aprendeu a executar as tarefas rapidamente, o que lhe permitia ter tempo precioso para seus próprios cálculos. Quando ouvia passos se aproximando de seu posto de trabalho, ele rapidamente os guardava na gaveta... essas foram as circunstâncias da Teoria da Relatividade!... e obviamente estamos falando de Albert Einstein!
Em 1905 ele publicou quatro artigos, produto de seu tempo livre no serviço de patentes: no primeiro ele demonstrava que a luz tem propriedades tanto de partículas quanto de ondas, e explicava o até então estranho efeito fotoelétrico pelo qual os elétrons são emitidos por corpos sólidos, quando estes são irradiados pela luz. O segundo artigo abordava a natureza das moléculas de pequenas partículas em suspensão. E os dois últimos apresentavam a teoria Especial da Relatividade e expressavam pela primeira vez a famosa equação E = mc². Esses quatro artigos publicados no principal jornal de física da época, o Annalen der Physik, teriam sido impressionantes como produção intelectual de uma vida inteira de um físico trabalhando em tempo integral, quanto mais de um funcionário de patentes de 26 anos. Historiadores da ciência chamaram o ano de 1905 de Annus Mirabilis - o ano milagroso. Somente um ano se pareceu com esse: 1666, quando Isaac Newton, com 24 anos, isolou-se no campo devido a uma epidemia de peste bubônica e produziu uma explicação da natureza espectral da luz solar, além de divisar a teoria da gravitação universal.
A Relatividade Especial não foi aceita de imediato. Tentou a carreira acadêmica sustentando suas pesquisas, mas foram rejeitadas como incompreensíveis, e ele continuou trabalhando no serviço de patentes por mais quatro anos. Mas seu trabalho não passou despercebido, começou a ficar evidente que ele podia ser um dos maiores cientistas de todos os tempos. Em uma carta de recomendação para um cargo na Universidade de Berlim, um líder da ciência alemã sugeria que a relatividade era uma "hipotética aberração momentânea", mas que Einstein era um grande pensador. Seu Prêmio Nobel foi concedido por seu trabalho sobre o efeito fotoelétrico em 1921... a relatividade ainda era muito estranha para ser mencionada.
Einstein se considerava um socialista. Tinha plena certeza que a 1° Guerra Mundial havia ocorrido principalmente por causa da intriga e incompetência das classes dirigentes, conclusão concordada por muitos historiadores, e se tornou também um pacifista.
Surgia nos anos 20, com a ascensão nazista, uma campanha pública contra Einstein. Promoveram-se encontros populares com tendências anti-semitas em várias cidades com o intuito de denunciar a teoria da relatividade. Einstein testemunhou em diversos tribunais a favor de membros do círculo acadêmico processados por causa dos seus pontos de vista políticos. Quando Hitler se tornou chanceler em 33, Einstein fugiu da Alemanha com sua segunda mulher e filhos. Os nazistas queimaram os trabalhos científicos de Einstein juntamente com outros livros de autores antifascistas em fogueiras públicas. Lançou-se ataques por todos os lados contra sua reputação científica. Os ataques foram liderados por outro ganhador do Nobel, Philip Lenard, que denunciou o "espírito asiático na ciência"..."nosso Führer eliminou esse espírito na política e na economia nacionais, onde é conhecido como marxismo. Na ciência natural, contudo, com a principal ênfase em Einstein, esse espírito ainda se mantém. Devemos reconhecer que é indigno de um alemão ser acólito intelectual de um judeu. A ciência natural propriamente dita é de origem ariana(...) Heil Hitler!" Ironicamente, mais ou menos no mesmo tempo, intelectuais stalinistas denunciavam a relatividade como "física burguesa".
Apoiava o sionismo, apesar do distanciamento religioso, muito em função do recrudescimento anti-sionista na Alemanha Nazista, mas muitos grupos sionistas o repeliram, principalmente porque ele exigia que os judeus se esforçassem no sentido de se aproximarem dos árabes e viverem em paz - uma devoção ao relativismo cultural.
Após deixar a Alemanha, Eistein soube que os nazistas tinham colocado sua cabeça a prêmio por 20 mil marcos - "não sabia que ela valia tanto" - Foi nomeado para o Instituto de Estudos Avançados em Princeton, onde ficaria o resto da vida. Quando perguntado qual salário considerava justo, sugeriu 3 mil dólares anuais. Vendo o espanto na face dos representantes do Instituto, achou sua proposta muito elevada, e baixou a quantia. Fixaram-lhe 16 mil dólares anuais.
Seu prestígio era tão grande que outros físicos europeus emigrados para os EUA se aproximaram dele. Solicitaram que intercedesse junto ao presidente norte-americano o desenvolvimento da bomba atômica para ultrapassar os esforços alemães na criação de armas nucleares. Não estava trabalhando na física nuclear, nem participou do projeto Manhattan mas escreveu a famosa carta a Roosevelt propondo o desenvolvimento desta. Anos depois, junto com Bertrand Russell e outros cientistas participou do frustrado movimento de interditar o desenvolvimento de armas nucleares. Escreveu: " Podermos escolher entre proibir as armas nucleares e defrontarmo-nos com a aniquilação geral (...) O nacionalismo é uma doença infantil, é o sarampo da humanidade. Nossos livros escolares glorificam a guerra e ocultam seus horrores. Eles inculcam o ódio nas veias das crianças. Eu ensinaria antes a paz do que a guerra. Procuraria inocular o amor e não o ódio."
Foi um grande defensor das liberdades civis nos EUA durante o obscuro período do macarthismo, conclamando os acusados a se negarem a testemunhar diante da Comissão de Atividades Antiamericanas na Câmara dos Deputados. Foi amplamente atacado pela imprensa e o próprio senador McCarthy declarou ser ele um inimigo da América.
Nos seus últimos anos, Einstein parecia, e de certo modo era, uma espécie de hippie idoso. Deixou o cabelo crescer e usava suéteres e jaquetas de couro ao invés de terno, mesmo quando recebia visitantes famosos. Absolutamente despretensioso, sem afetação alguma. "Falo com todas as pessoas do mesmo modo, sejam elas um lixeiro ou o Reitor da Universidade." Muitas vezes aparecia em público, às vezes caminhava e ajudava estudantes secundaristas com seus problemas de geometria (nem sempre com sucesso). Em matéria de religião seu pensamento foi mais profundo que a da maioria dos cientistas, mas muitas vezes incompreendido. Certa vez, o cardeal de Boston disse que a teoria da relatividade "ocultava a repugnante aparência do ateísmo". O rabino de Nova Iorque, alarmado, telegrafou a Einstein: "O Senhor acredita em Deus?" Ele respondeu:"Acredito no Deus de Spinoza, que se revela na harmonia de todos os seres, não no Deus que se interessa pela sorte e ação dos homens."
Morreu em 18 de abril de 1955, aos 76 anos. Um pouco antes escreveu: "Lá distante estava esse imenso mundo, o qual existe independente de nós como um grande e eterno enigma, ao menos em parte acessível ao nosso exame e meditação. A contemplação desse mundo nos acena como uma libertação (...) O caminho que conduz a esse paraíso não é tão confortável e atraente como o caminho do paraíso religioso, mas tem-se mostrado confiável, e eu nunca lamentei tê-lo escolhido"
Obrigado, Einstein!
(Texto adaptado de Carl Sagan)

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Moby Dick

Oh, a velha e rara baleia, em meio à tempestade e à ventania
Em seu lar oceânico será
Um gigante na força, onde a força é o direito,
E soberana do mar sem limites.
Antiga canção baleeira.
De todos os clássicos que li, um dos mais marcantes foi Moby Dick. Esplêndido! Li incessantemente, me imaginando tripulante da obsessiva expedição. Escrito em 1850 por Herman Melville, se tornou um clássico da literatura mundial. Nascido em Nova Iorque, Melville teve uma infância muito dura - era órfão de pai - e teve que abandonar os estudos para trabalhar. Em 1841 engajou-se como baleeiro no Acushnet e em 1842 foi capturado pelos taipis nas Ilhas Marquesas. Apesar da fama de canibalismo dos nativos, fora tratado com relativa hospitalidade, concluindo, mesmo sem ter lido Rosseau, que o selvagem é puro e bom, a civilização é que o corrompe. Na obra, essa ideia é passada através do amigo do protagonista Ishmael, Quiqueg. Baseado em suas próprias experiências e em relatos do famoso naufrágio do baleeiro Essex, de Nantucket, que foi atacado e destruído por uma imensa cachalote no Pacífico em 1821, ele escreveu este maravilhoso livro. Moby Dick é uma imensa e feroz cachalote branca, obsessivamente caçada pelo capitão do navio Pequod, o misterioso Acab, com uma perna feita com osso polido de cachalote. Representa a luta do bem contra o mal, a luta do humano contra o absoluto ameaçador, uma vingança obsessiva, a busca pela perfeição... leiam e interpretem como convier, o livro é maravilhoso! Muito me chamou a atenção um capítulo específico, o XLII, "A brancura do cachalote" em que o protagonista Ishmael trata da dualidade da representação da cor branca. Vejam alguns trechos:
"Era a brancura do cachalote que sobre todas as outras coisas me assustava.(...) Embora em muitos objetos naturais a brancura realce requintadamente a beleza(...) como sucede com os mármores, as camélias e as pérolas; e embora algumas nações tenham de algum modo reconhecido certa preeminência em tal cor, como se dá com os bárbaros e imponentes reis de Pegu colocando o título "Senhor dos Elefantes Brancos" (...) com os modernos reis de Sião desfraldando a imagem do mesmo quadrúpede, branca de neve, em sua bandeira,(...) com a flâmula de Hanover mostrando uma só figura, a de um corcel branco de neve; e com o grande império Austríaco, cesáreo, herdeiro da soberana Roma, tendo como cor o mesmo matiz imperial;(...) a brancura simbolize a alegria, pois entre os romanos uma pedra branca assinalava os dias felizes;(...) a inocência das noivas, a benignidade da velhice;(...) nos mistérios supremos das mais augustas religiões ele tenha sido erigido em símbolo da pureza e da força divina, sendo a chama branca bifurcada tida como a mais santa do altar pelos adoradores persas do fogo(...) Jove, num touro branco de neve(...) esconde-se algo enganador na mais secreta ideia dessa cor, a qual traz mais pânico à alma do que a vermelhidão que assusta no sangue. Essa qualidade enganadora é que faz a ideia de brancura, quando divorciada de associações mais amáveis e unida a algum objeto terrível em si mesmo, intensificar aquele terror até limites extremos. Testemunhem-no o urso branco dos pólos e o tubarão branco dos trópicos; que é que os transforma nos sumos horrores que são, a não ser aquela brancura lisa ou flocosa? Essa brancura espectral é que transmite tão detestável suavidade, até mais repulsa do que terrível, à muda e maligna exultação do seu aspecto." - N. do A. - "Essa particularidade é vivissimamente acentuada pelos franceses, com o nome que dão a esse peixe. A missa católica de defuntos começa com Requiem aeternam (repouso eterno), donde o nome de Requiem para a própria missa ou qualquer música fúnebre. Ora, aludindo à quietude de morte, branca e silenciosa, desse tubarão, e à branda mortalidade de seus hábitos, os franceses chamam-no Requin"."Que existe no albino que tão especificamente repugna e amiúde choca a vista, a ponto de às vezes causar aversão à sua própria parentela?(...) Por seu aspecto nevoso, o fantasma enluvado dos mares do sul recebeu a designação de Tempestade Branca.(...) o único predicado visível, na aparência dos mortos, que apavora ao máximo que os vê, é o palor marmóreo que neles permanece,(...)Será que por sua indefinição ele representa os vazios e imensidades sem coração do universo, e assim nos apunhala por trás com o pensamento de aniquilação, quando contemplamos os brancos abismos da Via-Láctea? Ou será porque, no fundo, o branco não é bem uma cor, mas a ausência vivível da cor, e ao mesmo tempo a suma de todas as cores; será por isso que há uma brancura muda e cheia de sentido numa ampla paisagem nevosa - um descolorido, onicolor, ateísmo ante o qual recuamos?(...) e quando prosseguimos e consideramos que o misterioso cosmético que produz todas as cores, o grande princípio da luz, permanece sempre branco ou incolor em si mesmo(...) De todas essas coisas o cachalote albino era o símbolo. Admirai-vos pois da furiosa caçada?"

terça-feira, 10 de julho de 2012

Symbolum Ignus.

Desde os tempos mais remotos da civilização o fogo sempre exerceu um papel importante nas atividades humanas. Não é de se estranhar toda a simbologia referente a este material "misterioso" e fascinante que de uma forma ou de outra, ainda faz parte dos nossos rituais. Fonte de calor e luz, não é difícil imaginar o benefício que trouxe aos seres humanos primitivos quando conseguiram reproduzi-lo à vontade. Não se sabe exatamente em qual momento histórico ocorreu essa descoberta, mas com certeza foi umas das que mais revolucionaram a vida humana. No plano físico, o fogo era um bem altamente precioso: o homem passou a poder se aquecer quando tinha frio; aquecer e amolecer os alimentos, além de livrá-los de micro-organismos - mesmo que sem sabê-lo - que causavam doenças, aumentando sua expectativa de vida; proteger-se mais eficazmente de predadores; enfim, tornou o homem mais seguro e protegido. Por conseguinte, esse sentimento de proteção trouxe uma influência emocional profundamente positiva. Imaginemos por um instante como viviam os homens ancestrais... caçavam durante o dia, correndo sérios riscos, para alimentar o seu bando, e tinham um medo frequente à noite, da noite, dos predadores... não deveria ser muito agradável viver dessa forma! A domesticação do fogo com certeza trouxe-lhes um sentimento de segurança inédito. Consequentemente, foi o início do seu despertar espiritual: com a chama aquecendo e dando segurança à sua moradia, a caverna, o homem primitivo prolongou seus momentos acordado noite adentro, proporcionando interação social, suas primeiras meditações e diálogos sobre as coisas em geral. Simultaneamente o fogo trazia o bem-estar do corpo físico e o fazia tomar consciência da sua dimensão espiritual e social. Nada mais perfeito e natural que o fogo se tornasse, com o braço do tempo, a base das primeiras religiões primitivas. Vemos diversos exemplos da importância do fogo: o zoroastrismo, ou "adoradores do fogo sagrado", viam na chama sagrada o Ahura Mazda, o anjo da luz e do bem; no antigo Egito, havia uma chama sagrada nos templos que não podia de forma alguma ser apagada, pois representaria um sinal de maldição e de vitória das forças do mal; na Grécia antiga, a chama olímpica, o culto a Héstia, deusa do fogo; em Roma, o culto a Vesta, e suas guardiãs do fogo, as vestais. Até nos dias de hoje esse "eco" ainda é ouvido. Em praticamente todas as religiões a simbologia do fogo está presente de alguma forma: candelabros, círios, velas, lâmpadas a óleo, incensos..., etc. O simbolismo é o mesmo: representar a luz cósmica e divina no plano terreno. Além do mais, há um outro aspecto tradicional relativo ao fogo: purificação, regeneração e transmutação. O fogo é um agente que pode consumir um vasto número de substâncias materiais. Ele é o elemento capaz de transmutar totalmente uma forma de matéria em outra, reduzindo-as a cinzas ou vapor. É utilizado para limpar e purificar objetos ou locais, pois nenhuma impureza mineral ou orgânica resite à sua ação. Por isso, era o elemento base da alquimia, que originou a química moderna. Essa alquimia material era a contraparte da alquimia espiritual, na purificação gradativa da alma humana.

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Tales de Mileto e a sombra.

Eis o primeiro grande "pensador" da história. Tales, filho de Examyas e Cleobulina, nascido por volta de 620 a.C. em Mileto, na Jônia, à beira do mar Egeu. Não teve filhos, mas adotou o sobrinho, filho de sua irmã, Kybisthos. Nasceu em uma das primeiras cidades-estado, e nenhum rei ali reinava. Era portanto um homem livre. Antes dele, os pensadores eram os magos, escribas, sacerdotes, guarda-livros, gente que contava histórias, fazia preces, ou cálculos para algum rei... Tales fez perguntas: o que é pensar? quais as relações entre o que penso e o que realmente é? haveria coisas que escapam dos pensamentos? qual é a natureza fundamental das coisas? Perguntas que até então não haviam sido feitas. É considerado o primeiro filósofo e matemático. Aliás, em sua época, essas duas palavras ainda não existiam. Foi o primeiro ser humano a enunciar resultados relativos a objetos matemáticos. Afirmou que os ângulos opostos pelo vértice formados por duas retas que se cruzam são iguais. Seu interesse maior era a geometria (que também ainda não existia) servindo de fonte para Euclides séculos depois. Demonstrou que um triângulo isósceles (iso - igual, skelos - perna) tinha dois ângulos iguais, estabelecendo vínculos entre os comprimentos e os ângulos. Sua ambição matemática era emitir verdades relativas a uma classe inteira de figuras geométricas. "Toda reta que passa pelo centro de uma circunferência a corta em duas partes iguais". Para nós, hoje, 27 séculos depois, é difícil imaginar essa frase com ineditismo, mas pensemos: foi um marco para o pensamento humano. Segundo os registros, Tales viajava muito (também no sentido de devanear) e em uma de suas viagens teve o insight para o seu famoso teorema: Após dias navegando, chegou à costa egípcia, e embarcou novamente, agora em uma falua, para subir o Nilo. Após algumas paradas, ele chegou ao seu destino... erguida em um platô, próximo a beira do rio, avistou o maior monumento já construído: a pirâmide de Quéops! Fazia suas irmãs, Quéfren e Miquerinos parecerem pequenas. Tales já havia sido avisado por outros viajantes da colossal imagem que veria, mas o monumento superou a sua imaginação. Caminhou até a base dela e sentou-se, hipnotizado. Um felá (homem do campo egípcio) chegou-se. Perguntou a Tales se ele imaginava quantas vidas custaram a construção daquela obra. Não fazia ideia... "para quê tantos mortos para se construir um monumento?" O felá lhe respondeu que fora construída pelo faraó Quéops com o único objetivo de obrigar os humanos a se persuadirem da própria pequenez, para nos oprimir pela sua grandeza, para nos mostrar o quão ínfimos somos, e o objetivo fora alcançado. O faraó quis que percebêssemos que nós homens e essa pirâmide não somos mensuráveis pela mesma medida. Era a megalomania descarada aos olhos de Tales. Porém o felá estava certo em um ponto: mesmo tendo sido construída pelos homens, estava além de seus conhecimentos. Era a maior construção existente e sua altura era impossível de ser medida. Passaram a noite na base da pirâmide. Imaginemos o espírito investigador de Tales pensando na medida da pirâmide... Quando o sol raiou, Tales se levantou e viu sua sombra se voltar para o oeste. Ficou imóvel por um tempo, olhando para sua sombra nas areias. Observou que ela diminuía a medida que o sol subia nos céus. Fosse o seu deus Hélio, ou o Rá dos egípcios, o Sol iguala todos na terra. Aí estava o seu aliado para a medida da pirâmide! Seja o mínimo homem ou o colossal monumento, o Sol estabelece a possibilidade da medida comum. Sua mente captou o seguinte: a relação que mantenho com a minha sombra é a mesma que a pirâmide mantém com a dela. Pediu ajuda ao felá: Tales traçou na areia uma circunferência de raio igual a sua altura e colocou-se no centro de pé. Ficou observando sua sombra... quando ela tocou a linha traçada no chão, gritou ao felá, que estava a espera do sinal. Este correu e fincou uma estaca no local onde a sombra da pirâmide estava. Tales saiu de sua posição e com a ajuda de uma corda mediu a distância que separava a base da pirâmide da estaca. Depois calculou a distância entre a extremidade da pirâmide ao seu meio e somou as medidas. Estava medida a altura da pirâmide. Foi uma artimanha da mente, magia do espírito.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Madame Butterfly.

Madame Butterfly é uma ópera em três atos de Giacomo Puccini. Estreou no teatro Scala de Milão a 17 de fevereiro de 1904. O Japão era um país quase totalmente isolado do resto do mundo, até que por volta de 1870 um presidente americano Ulysses S. Grant mandou uma expedição de reconhecimento a Sua Majestade Imperial, visando laços de amizade com o Império do Sol Nascente. Nas décadas que se seguiram, vários marinheiros norte-americanos visitaram o Japão e casaram com japonesas, muitas das vezes como um "passatempo" de viajante. A história de Cio-Cio-San (Butterfly) portanto, se baseia em fatos reais e descreve as trágicas consequências de um desses casamentos.
Primeiro ato: Benjamin Franklin Pinkerton, oficial da marinha dos Estados Unidos em Nagasaki, compra uma bela casa na colina com vista para o mar e "acerta" um casamento com a bela gueixa Cio-Cio-San, de quinze anos, apelidada carinhosamente de Butterfly pela sua leveza. Goro, o agente imobiliário e matrimonial, mostra a Pinkerton sua nova casa, quando chegam Suzuki, sua nova serva, aia de Butterfly, e Sharpless, cônsul dos Estados Unidos em Nagasaki. Pinkerton explica a ele o negócio que acaba de fazer. Sharpless o adverte que seria um grande pecado machucar os sentimentos da garota, que parece acreditar na seriedade desse casamento e está perdidamente apaixonada por ele. Pinkerton, numa atitude discriminatória e ignorante, ergue um brinde ao dia em que se casará de verdade com uma esposa americana. Chega Butterfly com suas amigas. Estas cantam um hino à beleza da paisagem e à ternura das garotas do Japão, enquanto Cio-Cio-San canta seu amor por Pinkerton. Chegam convidados, os parentes todos de Butterfly, com exceção do tio, um monge budista que se opõe a esse casamento. Butterfly, porém, confessa que visitou a missão americana em Nagasaki e se converteu à religião de Pinkerton, uma prova da sinceridade dos seus sentimentos. A cerimônia de casamento de Butterfly e Pinkerton é interrompida pela chegada do tio Bonzo, que ficou sabendo que Butterfly havia renunciado à fé dos seus antepassados, e lança uma maldição contra ela. Butterfly chora, mas é consolada pelo marido. Os convidados se retiram, e Butterfly e Pinkerton estão finalmente a sós. A noite cai. Segue-se um dueto de amor entre ambos.
Segundo ato: Já faz três anos que Pinkerton regressou aos Estados Unidos prometendo que voltaria. Butterfly chora, e Suzuki reza o tempo inteiro, ajoelhada diante da imagem do Buda. Suzuki diz a Butterfly que suspeita que seu marido não voltará mais, mas a garota não perde a esperança. Chega Sharpless, que traz uma carta de Pinkerton para Butterfly, cujo objetivo é prepará-la para o golpe que ela vai receber, ao saber que ele se casou com uma americana. Logo após chega Goro, trazendo um novo candidato à mão de Butterfly: o Príncipe Yamadori, homem rico e perdidamente apaixonado por Butterfly. Ela o repele com zombarias, reafirma que está casada com Pinkerton e o manda embora de sua casa. Sharpless começa a ler a carta, mas não consegue terminá-la porque Butterfly o interrompe o tempo todo com manifestações de amor e fidelidade ao marido, e ele também não tem coragem de revelar-lhe a cruel verdade. Ele fecha a carta, a põe de volta no bolso, e pergunta a ela o que faria se ele não voltasse. Voltaria a ser gueixa, responde Butterfly... ou, melhor ainda. "me mataria". Sharpless pede a ela que pare de alimentar ilusões e aceite a proposta do rico Yamadori. Sentindo-se ultrajada, Butterfly mostra-lhe o filho que teve com Pinkerton. A existência desse filho era ignorada por todos os americanos. Sharpless promete escrever a Pinkerton para contar-lhe a existência desse filho, e se retira. Lá fora, Suzuki golpeia Goro, acusando-o de espalhar calúnias a respeito do filho de Butterfly, dizendo que ninguém sabe quem é o pai do garoto. Ouve-se um tiro de canhão vindo do porto. É Uma navio de guerra. Butterfly olha com seus binóculos e lê o nome do navio: Abraham Lincoln, o navio de Pinkerton. Suzuki e Butterfly decoram a casa com flores primaveris, para aguardar a chegada de Pinkerton. Ocorre nesse momento o famoso Scuoti quella fronda di ciliegio, o Dueto das Flores. Sem poder dormir, Butterfly esperará a noite toda pelo marido.
Terceiro ato: Butterfly, que não dorme, canta uma cantiga de ninar para o filho, que adormece nos seus braços. Suzuki a aconselha que durma também, garantindo que quando Pinkerton chegar, ela virá acordá-la. Exausta, ela cai no sono. Falta pouco para amanhecer quando batem à porta. Suzuki atende: são Sharpless e Pinkerton. Pinkerton, ao ver todas as flores e ao ouvir de Suzuki como Butterfly o esperou todos esses anos, é tomado de um súbito remorso. De repente, Suzuki vê uma mulher no jardim e pergunta quem é. Sharpless não aguenta e conta-lhe toda a verdade. Suzuki leva as mãos ao rosto e diz: "Santas almas! Para a pequena, o sol se apagou"! Sharpless pede a Suzuki que vá ao jardim falar com Kate Pinkerton. Pinkerton sai correndo; ele não tem coragem de enfrentar a jovem cuja vida ele destruiu. Butterfly acorda e sai do quarto, entra na sala, e se depara com Sharpless, Suzuki em prantos, e uma mulher estranha. Butterfly compreende tudo: "Não! Não me digam nada. Eu já sei. Aquela é a mulher de Pinkerton"? Kate pede a ela que lhe entregue seu filho. "Serei como uma mãe para ele". Butterfly promete que o entregará dentro de meia hora. Sharpless e Kate se retiram da cena, e Butterfly pede a Suzuki que vá buscar seu filho. Enquanto isso, ela retira de um baú o punhal que o seu pai havia cometido seppuku, também conhecido como hara-kiri, o famoso suicídio ritual japonês, e lê a inscrição: "Com honra morre aquele que não mais com honra viver pode." Suzuki retorna com o garoto, e Butterfly pede a ela que a deixe a sós com ele. Beija carinhosamente o filho e pede que ele nunca se esqueça da sua mãe japonesa. Venda os olhos do menino, dá-lhe uns brinquedos para que brinque, e enfia a faca no ventre. Termina a tragédia!
Escutem e vejam alguns trechos desta belíssima ópera!