domingo, 22 de janeiro de 2012

O Pagador de Promessas - Dias Gomes

Para mim, uma das maiores obras do teatro brasileiro. O Pagador de Promessas reúne todos os elementos da tragédia clássica, mas com tipos genuinamente nordestinos. Nunca a vi encenada, mas já li e reli o livro várias vezes. A saber: Zé do Burro, na sua ingênua religiosidade arcaica, faz uma promessa a Iansã, em um terreiro de candomblé para salvar seu burro - levar uma enorme cruz nas costas até a Igreja de Santa Bárbara em Salvador. Ao chegar, recebe a negativa do padre para a concretização da promessa, entrar com a cruz na igreja, pois a promessa foi feita em um terreiro. Um simples tema com um andamento e desfecho magníficos.
Transcrevo a nota do próprio Dias Gomes sobre sua esplêndida e atualíssima obra, desejando que todos tenham o ímpeto de lê-la.
"O homem, no sistema capitalista, é um ser em luta contra uma engrenagem social que promove a sua desintegração, ao mesmo tempo que aparenta e declara agir em defesa de sua liberdade individual. Para adaptar-se a essa engrenagem, o indivíduo concede levianamente, ou abdica por completo de si mesmo. O Pagador de Promessas é a história de um homem que não quis conceder - e foi destruído. Seu tema central é, assim, o mito da liberdade de escolha, a sociedade burguesa não fornece ao indivíduo os meios necessários ao exercício dessa liberdade, tornando-a, portanto, ilusória. Claro, há também a intolerância, o sectarismo, o dogmatismo, que fazem com que vejamos inimigos naqueles que, de fato, estão do nosso lado. Há, sobretudo, a falta de uma linguagem comum entre os homens. Tudo isso tornando impossível a dignidade humana. São peças da engrenagem homicida.
Como Zé do Burro, cada um de nós tem suas promessas a pagar. A Deus ou ao Demônio, a uma Idéia. Em uma palavra, à nossa própria necessidade de entrega, de afirmação. E cada um de nós tem pela frente o seu "Padre Olavo". Ele não é símbolo da intolerância religiosa, mas de intolerância universal. Veste batina, mas poderia vestir farda ou toga. É padre, podia ser dono de um truste. E Zé do Burro, crente do interior da Bahia, podia ter nascido em qualquer parte do mundo, muito embora o sincretismo religioso e o atraso social, que provocam o conflito ético, sejam problemas locais, façam parte de uma realidade brasileira. O Pagador de Promessas não é uma peça anticlerical - espero que isso seja entendido. Zé do Burro é trucidado não pela Igreja, mas por toda uma organização social, na qual somente o povo das ruas com ele confraterniza e a seu lado se coloca, inicialmente por instinto e finalmente pela conscientização produzida pelo impacto emocional de sua morte. A invasão final do templo tem nítido sentido de vitória popular e destruição de uma engrenagem da qual, é verdade, a Igreja como instituição faz parte.
O Pagador de Promessas é uma fábula. Sua história é inteiramente imaginária, não obstante esteja toda ela construída sobre elementos folclóricos ou sociológicos que exprimem uma realidade. O sincretismo religioso que dá motivo ao drama é fato comum nas regiões brasileiras que, ao tempo da escravidão, receberam influência de cultos africanos. Não podendo praticar livremente esses cultos, procuravam os escravos burlar a vigilância dos senhores brancos, fingindo cultuar santos católicos, quando, na verdade, adoravam deuses nagôs. Assim, buscavam uma correspondência entre estes e aqueles - Oxalá (o maior dos orixás) identificou-se com Nosso Senhor do Bonfim, o santo de maior devoção da Bahia. Oxóssi, deus da caça, achou o seu símile em São Jorge, Exú, orixá malfazejo, foi equiparado ao diabo cristão. E assim por diante. Por isso, várias festas católicas, na Bahia (como em vários estados do Brasil), estão impregnadas de fetichismo, com danças, jogos e cantos de origem africana. Entre elas a de Santa Bárbara (Iansã na mitologia negra), que serve de cenário ao drama. É evidente que a Igreja Católica reage a esse sincretismo. E a oposição de Padre Olavo é perfeitamente lógica, dentro dos princípios de defesa da religião cristã, muito embora revele uma intolerância também inerente a esse culto.
Mas o que nos interessa não é o dogmatismo cristão, a intolerância religiosa - é a crueldade de uma engrenagem social construída sobre um falso conceito de liberdade. Zé do Burro, por definição, é um homem livre. Por definição apenas. O que nos importa é a exploração de que ele é vítima - exploração que constitui também um dos alicerces da sociedade em que vivemos.
O Pagador de Promessas nasceu, principalmente, dessa consciência que tenho de ser explorado e impotente para fazer uso da liberdade que, em princípio, me é concedida. Da luta que travo com a sociedade, quando desejo fazer valer meu direito de escolha, para seguir o meu próprio caminho e não aquele que ela me impõe. Do conflito interior em que me debato permanentemente, sabendo que o preço da minha sobrevivência é a prostituição total ou parcial. Zé do Burro faz aquilo que eu desejaria fazer - morre para não conceder. Não se prostitui. E sua morte não é inútil, não é um gesto de afirmação individualista, porque dá consciência ao povo, que carrega seu cadáver como bandeira."

Nenhum comentário: